1- O que é texto?


A maioria das pessoas pensa que texto é um conjunto de palavras escritas em papel, para serem lidas, recitadas, encenadas, o escambau... Na verdade, não. Essa palavra possui um sentido mais amplo. 

O homem, em sua necessidade inerente de interagir com o outro, inventou diversas formas de transmitir e entender mensagens. Nós nos comunicamos através de símbolos convencionados, cores, som, gestos, expressões fisionômicas, e, também, códigos de linguagem escrita.

Tudo isso é texto. Texto, simplificadamente, é um conjunto de idéias imbuídas de significado, transmitidas de alguém para alguém. Não se restringe à linguagem escrita. É todo tipo de comunicação.

Assim, se estamos num recinto e vemos uma placa com o desenho de um cigarro e uma tarja vermelha, entendemos a mensagem sugerida pela figura, rapidamente. Essa figura padrão constitui um exemplo de texto não-verbal.

Mas há outros, e a vida é riquíssima deles. Estão aos montes, nos olhares das pessoas, nas placas de trânsito, em gestos convencionados que fazemos com as mãos...

Portanto, vamos esquecer esse lance de texto ser, necessariamente, palavra escrita. Apenas acontece, às vezes, de ele ser feito de palavras e, então, começaremos a falar propriamente de literatura. Nesse âmbito, há uma consideração importante a fazer:

“Texto não é um aglomerado de frases”.

Claro que não. Só porque você está vendo um monte de letras, não significa que basta juntar palavras ao acaso e em breve estará polindo um Nobel de Literatura. É preciso haver uma lógica interna, garantida por aqueles dois mecanismozinhos que são a pedra no sapato de muita gente: coesão e coerência.

Textum vem do latim, que significa “teia”. Não é para menos. Escrever é tecer uma rede onde os fragmentos se solidarizam, de forma que cada um deles se torne indispensável elo de uma cadeia.
Assim, numa teia bem trançada, o leitor fica agradavelmente preso, pois uma idéia pede outra, uma ação leva à outra, e todos os parágrafos ou versos enroscam-se numa relação de dependência, como fios de um pano.

2- O que é contexto?

Já percebemos que, para escrever um bom texto, é preciso que as partes se complementem, criando uma idéia central, algo de mais abrangente. Chamo atenção para esse “algo de mais abrangente”: é o contexto. De modo geral, contexto é uma unidade lingüística maior dentro da qual insere-se uma unidade lingüística menor.

Por exemplo: um belo dia seu namorado comenta com você que ouviu alguém dizer que você disse que ele era um baixo. Você fica sem entender, faz um esforço de memória, e aí se lembra: sim, você disse mesmo.

Mas foi assim: estavam todos na sala falando sobre música e alguém comentou sobre a existência de vários tipos de vozes: barítono, soprano, tenor, baixo... Você, lembrando-se de como a voz do seu amor é grave, comentou, então, que ele deveria ser um baixo.

Se alguém passou perto e entendeu errado, ou se algum olho gordo descontextualizou sua frase para ver o circo pegar fogo, não podemos saber ao certo. Sabemos, apenas, que chegou aos ouvidos dele um fio isolado de uma teia, e que a falta dos outros elementos distorceu a mensagem. Isso é descontextualização. Vê-se muito em política.

“Baixo” no contexto da música significa grave. Num contexto moral, assume um tom pra lá de pejorativo. E, ainda, num contexto métrico, significa que ele é pequeno. E, só por causa de uma descontextualização, começamos discutindo música e já estamos falando do tamanho dele. Percebe como isso pode ser perigoso? Acaba criando duplas, triplas interpretações, das quais a literatura se apropria constantemente para mexer com o ser humano.

Em suma, você já entendeu: contexto é uma coisa grande onde cabe uma coisa pequena. A palavra no contexto da frase, a frase no contexto do parágrafo, o parágrafo no contexto do texto, e o texto no... Agora, podemos falar de intertextualidade.

3- O que é intertextualidade?
Sugiro que você leia as sábias palavras de Platão e Fiorin:

“Com muita frequência um texto retoma passagens de outro. Quando um texto de caráter científico cita outros textos, isto é feito de maneira explícita. O texto citado vem entre aspas e em nota indica-se o autor e o livro donde se extraiu a citação.

Num texto literário, a citação de outros textos é implícita, ou seja, um poeta ou romancista não indica  o autor e a obra donde retira as passagens citadas, pois pressupõe que o leitor compartilhe com ele um mesmo conjunto de informações a respeito de obras que compõem um determinado universo cultural. Os dados a respeito dos textos literários, mitológicos, históricos são necessários, muitas vezes, para compreensão global de um texto.”

Bem, eis aí a importância de ler sempre. Assim como as palavras de um texto não se juntam de forma isolada, os livros não são escritos ao acaso. Toda obra é fruto de influências contidas nas leituras anteriores de quem escreveu. O resultado é que as mesmas idéias, ou os mesmos temas circulam por aí na literatura do mundo, revestidos de roupagens diferentes segundo especifidades de época, autor, lugar... O fato é que existe um conjunto universo cultural, que engloba todos os textos: a literatura. E, por vezes, muitas vezes, um elemento desse conjunto estabelece relação de sentido com o outro. Temos aí uma intertextualidade.

Basicamente, sempre que um texto faz alusão, cita ou dialoga com outro, temos uma relação intertextual. A cantora Pitty lançou um álbum intitulado “Admirável chip novo”, em clara referência a uma célebre música da MPB brasileira. Certa vez, uma revista de circulação nacional publicou uma reportagem sobre o programa nuclear brasileiro, chamada “Yes, nós temos urânio!”. Eis aí mais uma referência a uma música, dessa vez, com a cantora Carmem Miranda. É muito comum a construção de títulos intertextuais.

A intertextualidade não acontece, necessariamente, apenas entre textos escritos. Pode ocorrer entre linguagens diferentes também. Um bom exemplo é a polêmica em torno das comparações entre O Código da Vinci, o filme e o livro. São dois tipos de linguagem diferentes, mas tratando de um mesmo assunto, e que obviamente guardam relação de sentido um com o outro.

A intertextualidade pode ocorrer basicamente sob duas formas: paráfrase e paródia. É simples.

  3.1- Paráfrase

A paráfrase tem um sentido positivo. Ocorre quando um texto cita outro na intenção de reafirmar, reforçar, exaltar, concordar ou apropriar-se de seu significado para a construção de uma nova idéia. O melhor exemplo é nosso Hino Nacional.

(...)
Do que a terra mais garrida
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores,
“Nossos bosques têm mais vida”,
“Nossa vida” no teu seio “mais amores”.

Vê as aspas? Os trechos envolvidos por elas foram retirados de um poema romântico chamado “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. A exaltação ufanista da brasilidade, típica do início do romantismo, foi emprestada por Joaquim Osório Duque Estrada, para compor a letra do hino brasileiro, o que obviamente convém, pois a intenção do hino também é de exaltação.

3.2- A paródia
A paródia já significa o extremo oposto da paráfrase. É quando citamos um trecho no intuito de negar seu significado, polemizar com ele, criticá-lo, e, geralmente, ridicularizá-lo. (O Casseta e Planeta faz isso direto...)
Sem dúvida, o texto mais parodiado da literatura brasileira é a mesma canção do exílio. Sobre ela, Murilo Mendes escreveu:

Canção do exílio

Minha terra tem macieiras da Califórnia
Onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
São pretos que vivem em torres de ametista,
Os sargentos do exército são monistas, cubistas,
Os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda
Eu morro sufocado
Em terra estrangeira
Nossas flores são mais bonitas
Nossas frutas mais gostosas
Mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
E ouvir um sabiá com certidão de idade!

Onde se perceba uma pesada crítica a vários aspectos da sociedade brasileira, revestidos de um certo humor negro e ácido. Começa criticando as influências estrangeiras, representadas no início do texto pelas macieiras da Califórnia e gaturamos de Veneza. Poetas pretos vivendo em torres de ametista significa que nossos poetas são elementos de condição social inferiorizada e submissa, e habitam um mundo idealizado, alienado e em descompasso com o mundo real (trata-se também de uma fina ironia ao simbolismo, e mais especificamente, ao poeta Cruz e Souza, que era muito negro e, tal qual o simbolismo, apreciava os altos vôos de imaginação). Sobre os sargentos serem monistas, cubistas, é fácil a compreensão: quem tem o dever de garantir a segurança do país perde tempo enveredando-se por teorias estéticas e filosóficas sem aplicação. Sobre os filósofos polacos, sabemos que “polaca” é um termo designativo de prostituição, portanto, os amigos do conhecimento vendem a prestações, são capitalistas, mentes prostituídas, sem ideais que não os da venalidade. Os oradores, assim como os insetos, só sabem fazer barulho, e nossa natureza até que é realmente maravilhosa, mas nada acessível para a maioria da população, e, como se não bastasse, o Brasil perde a sua autenticidade (“ai quem me dera chupar uma carambola...”), a ponto de parecer uma terra estrangeira. Nada parecido com entusiasmada homenagem da canção do exílio original, não é mesmo?
Partindo do pressuposto de que somos todos vestibulandos, não custa nada lembrar a você que a canção do exílio de Murilo Mendes é um poema modernista. Nela, você encontra várias características dessa escola, mas duas se manifestam especialmente: revisão do passado histórico e nacionalismo crítico. É proposta do nosso modernismo olhar a história do Brasil e repensar os fatos. O resultado, você já sabe: eles encontraram muita, mas muita maracutaia. E resolvem descer o braço nas  demonstrações de corrupção e injustiça da nossa história através da literatura. Nesse sentido, nada mais apropriado do que resgatar um antigo poema romântico, idealizado e inocente, e ridicularizá-lo com os elementos da linguagem moderna. Intertextualidade é comum no modernismo, principalmente paródia de textos antigos, com intenções satíricas.
E antes de você bocejar, porque já vou me alongando demais, aproveito o ensejo para mostrar uma paródia visual. A tela “Os comedores de batatas”, 1885, de Vicent van Gogh e o quadro “Vendo tevê”, do pintor contemporâneo Tsing-Fang Chen. “Os comedores de batatas” mostra uma família reunida em torno de uma mesa de jantar, comendo, obviamente, uma refeição de batatas. Tsing-Fang, muitas décadas depois, pintou essa mesma família, com traços e cores parecidos, mas, dessa vez, todos à mesa  reunidos em torno de uma televisão. Esses dois quadros são textos interessantes, e se tornam mais ainda se pudermos apreender a relação intertextual entre eles.

OBS:

Para isso é preciso, como diz Platão, que você compartilhe desse conjunto de informações a respeito das obras que compõem o universo cultural. Se desconhecesse o quadro de van Gogh, provavelmente o de Tsing-Fang não teria nada de especial, ou mesmo figuraria ridículo para você. Talvez por isso ler seja importante. Aumenta nossa capacidade de estabelecer conexões porque amplia nosso espaço amostral, aumenta os espaços. Saber o que é intertextualidade é fácil. Quase todo mundo sabe. Difícil é percebê-la nos textos, e entender o porquê de estar ali, a intenção do autor e o contexto histórico em que se encontra. Eu mesma, por pura diversão, tentei estabelecer uma intertextualidade com a bíblia no começo na explicação. Só por diversão mesmo. Se você tiver percebido, que bom, você está ligado. Se não, dá uma procurada.





Bibliografia:


• Para entender o texto – Platão & Fiorin, Ática
• Literatura Brasileira- Milliam Roberto Cereja , Thereza Cochar Magalhães
• Língua, literatura e produção de textos – José de Nicola

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