O ato de ler

 

O ato de ler é geralmente interpretado como a decodificação daquilo que está escrito. Dessa forma, saber ler consiste num conhecimento baseado principalmente na habilidade de memorizar determinados sinais gráficos (as letras). Uma vez adquirido tal conhecimento, a leitura passa a ser um processo mecânico, prejudicado apenas por limitações materiais (falta de luz ou mau estado do impresso, por exemplo) ou por questões lingüísticas (palavras com significado ignorado ou frases muito complexas).

No texto de abertura desse capítulo você encontrou um conceito de leitura muito mais amplo do que essa mera habilidade mecânica. Relacionando o conteúdo do texto com o nome deste capítulo, você percebeu (“leu”) que nossa intenção era apresentar a leitura justamente como um processo amplo, que inclui nosso relacionamento com a realidade e a forma como pensamos essa realidade e esse relacionamento. Ler é, portanto, um processo contínuo que se confunde com o próprio fato de estar no mundo – biológica e socialmente falando.

A sociedade de que somos parte produz e mantém uma cultura. Essa cultura é um conjunto complexo e dinâmico que abrange desde rituais mínimos de convivência até aprofundados conhecimentos científicos e técnicos. Desse conjunto fazem parte também idéias sobre a realidade, que muitas vezes nos levam a vê-la de uma forma pouco “real”. Aprender a ler o mundo (adquirir a “inteligência do mundo”, nas palavras de Paulo Freire) significa conhecer esses valores e essas idéias. Significa, também, pensar sobre eles, desenvolvendo uma posição crítica e própria. Aprendemos a ler a realidade em nosso cotidiano social.

Desde crianças, identificamos atitudes agressivas, diferenciando-as das receptivas. A convivência social nos ensina a perceber quais lugares devemos freqüentar, quais comportamentos devemos adotar ou evitar em situações determinadas. Adquirindo nossa cultura, aprendemos a ler nosso grupo social, interiorizando os pequenos rituais estabelecidos para as relações sociais. simpatia, agredir, demonstrar indiferença. Aprendemos também que somos permanentemente “lidos”, o que nos leva a utilizar nosso comportamento como uma forma de linguagem, capaz de agradar, despertar simpatia, agredir, demonstrar indiferença.

Esse aprendizado social inclui também formas de pensar a realidade. Aprendemos a pensar, por exemplo, que é necessário adquirir conhecimentos técnicos e científicos que nos permitam ingressar no mercado de trabalho. Aprendemos a ver na infância e na adolescência períodos da vida destinados principalmente à preparação da vida adulta. Aprendemos muitos outros valores sociais, que nos criam hábitos de consumo e posições perante a vida. A vida social, dessa forma, não se limita a nos ensinar a ler a realidade, mas chega ao ponto de orientar essa leitura num sentido mais ou menos permanente. Somos levados a adotar determinadas expectativas – e a satisfação dessas expectativas é vista como forma de felicidade.

O mundo social é permanentemente leitor e de leitura dos seus indivíduos. Nossa cultura nos transfere conhecimentos sobre a realidade e formas de pensas essa mesma realidade. Aprender a ler o mundo é apropriar-se desses valores de nossa cultura. É, também, submetê-los a um processo permanente de questionamento, do qual participa nossa capacidade de duvidar. Afinal, será essa a única maneira de organizar a vida? Será esse o único mundo que somos capazes de fazer? Não será possível pensar a humanidade em outros termos? Esse exercício da dúvida é sempre benéfico, pois oferece condições de superar as leituras mais imediatas da realidade, atingindo releituras importantes para quem se preocupa com a saúde social e física do ser humano.

 

(INFANTE, Ulisses. Do texto ao texto.)

1 comentários:

Unknown 13 de março de 2021 às 13:59  

Qual nome desse livro

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