LÍNGUA DO NORDESTE


NELLY CARVALHO


No Nordeste, a língua portuguesa aportou primeiro. Aqui chegou com os donatários das capitanias, quando o Brasil, ou melhor, a Terra de Vera Cruz era apenas uma faixa estreita, limitada pelo Tratado de Tordesilhas. Certo que São Vicente, no Sudeste, também foi uma próspera capitania, mas os jesuítas, que por lá viveram catequizando os gentios, preferiam ensinar-lhes em latim e aprenderem a língua geral da costa - o tupi - para melhor divulgar a fé cristã.

Assim, fomos nós, os nordestinos, que demos início à saga da língua portuguesa no Brasil, adaptando-a a novos hábitos fonéticos, recheando-a de termos de origem indígena e, mais adiante, de origem africana, e guardamos esta modalidade de língua transplantada, como um tesouro, sem quase modificá-la, até porque, diferente do Sudeste, não recebemos contingentes de imigrantes, falantes de outras línguas.

Como língua e cultura são indissociáveis, a língua do Nordeste marca uma cultura rica em termos, em ritmos, em expressão plástica, isto tudo com um traço eminentemente popular, que não se aprende na escola, nem é valorizada em época de globalização. Pois essa cultura tão rica e essa língua tão curiosa e arcaizante pertencem, ironicamente, a uma região pobre, ou melhor, que empobreceu no decurso da colonização, preterida por outras regiões.

Os que aqui vivem talvez não notem essas peculiaridades regionais, pois nelas estamos imersos, e só podemos apreciar algo quando nos afastamos, como nos ensina Paulo Freire com seu método. Um certo afastamento é que nos faz ver a realidade de forma objetiva sem o envolvimento que tolda a capacidade de observação e análise. Foi o que aconteceu com Fred Navarro, para escrever o seu "Dicionário do Nordeste". Nascido no Recife, mas morando em São Paulo há 15 anos, teve assim a distância no tempo e no espaço, necessária a uma perspectiva de sua região, tomando-a como objeto de pesquisa lingüístico-cultural. Primeiramente publicou "Assim falava Lampião" (98) catalogando termos da Bahia ao Maranhão. A edição atual tomou o nome bem mais apropriado de "Dicionário do Nordeste", cujo acervo cresceu, constando de 5.000 expressões dessa nossa região. Não é uma pesquisa acadêmica, o que não influi no seu valor e talvez até o ressalte. As expressões usadas conhecidas de todos nós, foram pesquisadas do litoral ao sertão brabo (nome bem nordestino) Constam na listagem, termos vindos da mídia com guia eleitoral (usado só em Pernambuco), da herança árabe (alcatifa, alfenim, alfelô) e outros vindos das várias camadas de falares, como boyzinha, (urbano), bolo de rolo pernambucano (tradicional), boró (popular) grear (urbano), guenzo(zona da mata), briba (sertão). O autor também viajou através do tempo, recolhendo termos arcaizados: gibão, gigolê, gata-parida, cunhã, pai d’égua, tareco. Outros são bastante atuais e ainda passeiam nas conversas cotidianas no Nordeste imenso e esquecido: urna prenhe, trem virado, titela, toco, serra (lixa de unha), raspadinha, rasgar a boca.

A pesquisa durou oito anos e veio preencher uma lacuna que existia (pelo menos para nós, pernambucanos) desde que Mário Marroquim lançou "A língua do Nordeste" nos longes de 1934. (Antes, houvera o "Vocabulário Pernambucano" de Pereira da Costa, base de todas as pesquisas sobre nossa variante).

Bahia, Ceará e Sergipe têm os seus "Atlas Prévios dos Falares", elaborados pelos grupos das respectivas universidades federais. Em Pernambuco (leia-se UFPE), nunca assumimos essa tarefa de mapear os usos lingüísticos, falha, de certa forma, sanada com a obra de Fred Navarro. O melhor de tudo é que os verbetes do dicionário são abonados com letras de músicas regionais, receitas diversas e frases dos escritores que por aqui viveram e se expressaram no linguajar rico de metáforas e metonímias de nossa gente, que assume uma visão de mundo diferente das demais regiões, pelas expressões que emprega criadas a partir da vivência, e na maioria vindas da boca do povo, pois como diz Bandeira ele é que fala o português gostoso do Brasil.


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